sexta-feira, 25 de maio de 2012

Voluntários da pátria


Então, tava eu vendo um telejornal noturno, desses que já carregam seriedade no sotaque dos apresentadores e nos presenteiam com matérias de cunho tecnológico e social, para nos sentirmos parte da porcaria da aldeia global.

Enquanto eu devorava um sanduíche, assisti a uma reportagem sobre intercâmbio no exterior (sim, seria para onde mais?) a fim de o cidadão se engajar em trabalhos voluntários. Pessoas abnegadas que abandonaram sua vida de contribuição para a engrenagem capitalista no Brasil com o intuito de ajudar o próximo, ou o lôngimo, e mostrar ao sistema vigente que há, sim, uma luz no fim desse túnel de horror.

Né?

Eis que as meninas e mulheres que propagandearam o intercâmbio de bom samaritanismo eram pessoas lindas, bem cuidadas, de bons rostos e bons narizes, bem feitos. Mãos macias, unhas delicadas... todas de aparente berço esplêndido.  Mãos macias, unhas delicadas...

Vamo lá: existe uma indústria do trabalho voluntário no exterior. Assim como existe a do aquecimento global, frise-se e abram-se esses parênteses. A pessoa quer estudar no exterior. Louvável, puxa!, nunca é demais aprender outra língua diretamente no país falante dessa. Malandro volta ao Brasil com uma carga cultural fodidaça, pronto para guerrear dentro de uma empresa competitiva. E lá fora há sempre cursos que não se encontram aqui. Perfeito!

Mas daí alguém tem a brilhante ideia de pagar caro para trabalhar em prol do ser humano. Porrrra... trabalho voluntário no exterior? Faça-me o favor! Uma das meninas fala na TV da rica experiência de ajudar pessoas e aprender com isso. Ora, mas até conversando com seguranças de estádio a criatura aprende algo prdutivo. Língua estrangeira a malandragem aprende na rua, no contato com o indivíduo comum, vendedor de frutas, dono de estacionamento, policial, gari, atendente de brechó. "Mas quiquitem, Marat?", o incauto me pergunta.

O que pega é que eu sou do povo. Morei no subúrbio e sei como é a vida de gente que pega ônibus, ou dois deles, ou metrô, ou sei lá, para trabalhar. Criar filhos, lidar com chefe e problemas no emprego. E tudo isso na tentativa (às vezes vã) de simplesmente viver sua vida e, justamente por isso, dar uma grande contribuição pro mundo.

Esse pessoal aí tem menos tempo para caridade. E se o faz, é para instituições em seu bairro, a fim de melhorar seu mundo. Parece, assim, bem mais sincero. Galera que é criada em berço de ouro tem esse tempo. Isso é bom? Olha... para as pessoas beneficiadas, certamente. Mas algo me cheira a safári de rico. Como se todos cometessem bullying ao burga, chamando-o de 'burga', e aí um dia o cara resolve mostrar ao mundo que é uma pessoa boa, ajudando os outros e aproveitando para aprender culturas novas.

E desde quando alguém precisa fortalecer laços com crianças órfãs na Índia ou auxiliar pessoas com necessidades especiais lá no Daguestão? Não teria isso aqui no Brasil, no bairro ao lado? Culturas diferentes? Há regiões inóspitas no próprio Brasil, com sotaques curiosos, comidas apimentadas e costumes relevantes. Pagar de bom samaritano no exterior às custas do dinheiro que o pai deposita na conta todo mês é até simples. Coisa de quem nunca arrumou a cama na vida... nunca pegou em enxada!


Vai viajar pra fora, aproveitar e fazer festa. Se for para ficar, que trabalhe duro. Ir para lá para ser voluntário e ainda pagar por isso é algo que vai contra o próprio princípio do voluntarismo. Foda é quando empresas de grande porte avaliam trabalho de caridade como sendo pré-requisito para ser admitido em seus fronts:

- Mmm... vejamos seu currículo: expert em vendas, cursos de marketing, especialização em excelência em gestão... não sei, não sei...
- Continue lendo, senhor.

- Xovê... pós em gestão pessoal e... atividades voluntárias na Namíbia? Perfeito! Tu é o cara que estávamos procurando. O cargo é teu! Bem-vindo!

Contratam pessoas competentes ou pessoas boazinhas? Enquanto isso, vou lá estudar para poder fazer o que faço de melhor: trabalhar em prol do conhecimento do ser humano ao meu redor. Minhas atitudes voluntárias são pequenas, mas aposto que geram sorrisos na cara do pacato cidadão da civilização. Isso tudo sem publicidade de página social nem máscara africana pendurada na parede da sala.