quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

Na alegria e na tristeza

Durante minhas férias na casa de minha prima no bairro Tristeza, em Porto Alegre, pude presenciar um troço que vai ficar plantado nas malditas lembranças de 2007.
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Era fevereiro e eu precisava desopilar um pouco, mesmo sendo conhecido como o maior empurrador-com-a-barriga da região metropolitana. Estresse? Só conheci uma vez e foi de me cagar nas calças. A casa da primona era de classe média alta, o que garantiu pleno conforto desse observador torto do cotidiano. A não ser pela insistente presença de ácaros no quarto onde eu ficava, tudo rolou na paz. Pude aproveitar as manhãs para zanzar a esmo pelo bairro e curtir como era calculada a vida de burguês: casas imensas, mal desenhadas (mil peças, mas tudo do tamanho de caixinhas de fósforo), cercas elétricas, cães famintos, esnobismo, cafonice e um carro oneroso enfiado na garagem.
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A presença de guardinhas pela rua dá uma sensação fake de paz. Eles, com toda sua bravura e destreza motora amealhadas em cursos por correspondência, não são páreos para deter a circulação de malditos mendigos, punguistas, meliantes e chinelagem em geral. Porque chinelagem é sempre chinelagem, pouco importando a classificação cretina que os politicamente correctos atribuem a ela.
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E loucos. Esquizofrênicos estão sempre num sofrimento cuiudo nessas cidades grandes. Sei, sei, uma capital, por conta da concentração desordenada de seres humanos, é lugar certo para encontrar uma quantidade abastada de pinéis. E na Tristeza não era diferente.
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Aliás, o personagem que apresento, Carlinhos, era diferente. Era bem arrumado, com camisa polo azul, razoavelmente limpo (quem seria 'totalmente' limpo nessa vida?) e falava com calma. Tinha até umas ideias obtusas sobre como limpar os arroios de Porto, para que seu querido Guaíba se tornasse o outrora estuário espelhado que já banhou as plagas gaudérias do leste.
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Conheci o figura por conta de uma abordagem dele, enquanto eu tirava fotos da prainha no fim da Padre Reus, a respeito de uma camisa verde da Marka Diabo que uso. Ele apontou pro desenho e me perguntou se era a prefeitura de Parobé na estampa (era viajado, o cidadão). Respondi que não, era apenas o edifício da Capitol, em Los Angeles:
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- ... os Beach Boys gravaram lá, saca?
- Ah, é? E o que esse Pit Bóis toca?
- Olha...
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Falei que eram músicas de amor. Menti, mas preferi não estender muito o assunto. Carlinhos me tirou pra confidente. Eis o carma de quem é simpático com a sociedade. Tivesse eu saído correndo, gritando feito um porco fugindo do abate, teria reescrito um trecho de minha história.
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- Ô, cabeludo, porra... cara, eu fui tri apaixonado por uma mina que morava no Nonoai, tchê! Sabe o que é ser apaixonado?
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Não, não sabia. Mas já que o psicólogo era eu mesmo, ouvi a história.
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- ... e um dia ela foi embora pra Guaíba. Nunca mais tive notícias dela. Gisele era o nome dela. Linda, morena cor de carnaval!
- Tá, e nunca foi atrás da mulher, tchê? Só pegar um busão e se mandar pra Guaíba. A cidade é pequena.
- Tu tá louco? Tá achando que eu sou burro? A ponte móvel tá pra cair, cara! Tem levantamento da prefeitura, do governo federal e dos Estados Unidos... o Saddam fez, sério, tá registrado no cartório do Centro... que a ponte tem problema na estrutura e pode desabar a qualquer momento...
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Teorias conspiratória.
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Enfim... como Gisele e ele eram muito ligados espiritualmente, era lógico imaginar onde ela estava em Guaíba:
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- Tá morando na Avenida Alegria, cabeludo! Saca? Eu moro aqui na Tristeza. Ela mora na Alegria. Tá tudo conectado com o espaço, eu li muito isso. O Sistema Solar é pai de todos os corações puros na Terra. Ela me manda mensagem assim. É lógico que ela mora lá. São antônimos, tá ligado? Ela brincava que éramos opostos que se atrairam...
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A Alegria é uma avenida litorânea que, com muuuito custo, dava pra ver de onde estávamos. Cogitei a ideia tola de dizer ao sujeito que havia visto um corpo da cor do pecado se querendo no horizonte, mas seria muita judiação.
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- E o que tu pretende fazer pra reencontrar a mulher? Lançar uma garrafa com um bilhetinho na correnteza, pra chegar lá, hahahah?
- Ôooo... peraí: baita ideia, cara! Porra, meu, tu salvou minha vida!
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Sim, no outro dia lá estava ele no mesmo horário, de camisa do Zequinha e bermuda de 10 pila. A garrafa veio até com o rótulo de Walesa, uma vodka misturada com metanol que vendem para metaleiros pobres. E um bilhetinho dentro, amarrado com fita mimosa verde. Carlinhos veio todo feliz pro meu lado:
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- Taí, cabeludo... a Gisele agora vai saber que eu tô esperando por ela!
- Qual é teu plano com essa parada?
- Vou pegar aquela canoa ali, remar até uns 30m pra dentro do rio e jogar a garrafa. A correnteza que se vire pra levar a garrafa até a mulher, né mesmo?
- Ô, certamente. Tem certeza absoluta que ela tá ligada nessa coisa de Alegria e Tristeza que nem tu?
- Ah, ela é muito inteligente...
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Ela, talvez. Mas meu amigo não. Se errou todo pra remar o barquinho, quase caiu, deu uns berros contra o vazio, jogou a garrafa e imediatamente retornou, sem nem olhar pra onde sua mensagem tinha ido. Eu já não estava mais ali, pois achei que seria prudente tirar meu time de campo, com medo de ser acusado de cúmplice de roubo de caiaque.
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Pelos cálculos de Carlinhos, a garrafa iria naturalmente até a Alegria por contra da correnteza Sul do Guaíba. Ao fim da tarde, voltei à prainha e vi meu brou sentado na beira da areia, em estado catatônico, chorando:
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- Que que deu, bicho?
- Cara... a correnteza é Norte. A garrafa foi pro Norte, cabeludo! Porra...

(crowd goes sad: "Ahhhhh...")
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Que foda, hein?! Segundo suas conjecturas, a droga da garrafa deve ter ido parar na Ilha das Flores e alguma ribeirinha protagonista de documentário cult está se batendo para entender a esculhambação sentimental registrada por ele.
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O certo é que até o fim de minha tour pela Tristeza, semanas depois, podia ver Carlinhos absorto em sua decepção, com a mesma roupa, estourando violentos crivos, sem nem pensar em como consertar seu imaginado erro.
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Imaginado, sim. Ele errou, mas de outra maneira. Havia certamente alguém na Alegria pensando em como encontrar seu rico príncipe nas margens portoalegrenses, após desdobrar o nó da fita mimosa. A correnteza era mesmo para o Sul.
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2 comentários:

  1. Marat, Por que não surpreende ser você a cabeça por trás da mensagem na garrafa??? Romantico e sarcástico... que combinação Cáustica essa sua!!!

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